ProScout – Quando é que apareceu a paixão pelo futebol?
Rui Miguel Tovar – Heeyyyyyy, tudo fixe numa nice? Obrigado pela proposta do questionário, vamos a isso. Desconfio que a paixão aparece em Setembro 1976, quando vi o primeiro dérbi (3-0 para o Sporting, em Alvalade) dentro da barriga da minha mãe.
PS – Qual é a tua primeira memória do futebol e os teus principais ídolos?
RMT – A primeira memória está algures entre Alvalade, Luz, Bonfim ou Restelo, onde o meu pai ia em trabalho pela RTP e eu fazia por acompanhá-lo sem sequer perceber os insultos de outros tempos, tipo ‘ò Tovar, se és lagarto, o que é que estás aqui a fazer?’ Só queria entrar no estádio e ver o jogo. Ligava zero aos marcadores dos golos ou a quem fazia as assistências, por mais extraordinários que fossem; só queria ver bola. Isso mudou com o Futre, nos juniores do Sporting. Passei então a dar mais atenção ao jogador e menos ao clube. É ele o primeiro ídolo. Julgava eu. Há menos de uma semana, a minha mãe deu-me uma caixa de papelada da minha infância e encontrei um desenho quase-artístico da minha autoria para a minha avó da Lourinhã em que escrevi Ademar no topo de uma hierarquia de jogadores favoritos. A-d-e-m-a-r? Great scott
PS – Apresentas um estilo muito próprio com um contexto histórico em praticamente todas as intervenções. Passas mais tempo a ver jogos de épocas passadas ou da actualidade?
RMT – Estamos mesmo em que ano? Cultivo muito o passado, sim, até porque há histórias por descobrir e outras pouco faladas, como, por exemplo, Francisco dos Santos ter sido o primeiro português a jogar no estrangeiro – Lazio 1909 – antes de se dedicar por inteiro à escultura – que o diga a estátua do Marquês de Pombal. Mas também cultivo o presente: só vejo bola se estiver no estádio. De resto, cortei com o futebol de sofá, uma prática muito comum até 2014 com uma taça xxl de tremoços a dividir o território entre pai e filho.
PS – Colaboraste com várias publicações como o “Record”, “i”, “Observador”, “Sábado” e agora mais recentemente colaboras com a RTP. Como é que todas estas experiências te fizeram crescer na forma como olhas para o jogo?
RMT – As experiências só te fazem realmente crescer através de outras pessoas. Entrei no Record aos 18 anos e não sabia de nada de jornalismo nem de interacção com estranhos. Leio as minhas primeiras colunas de breves de Novembro 1995 e fico com vergonha alheia, como se estivesse a ver um episódio do Seinfeld. Só que a malta do futebol internacional, a minha secção até Janeiro 2009, era animada e criativa até dizer chega, sobretudo o César de Oliveira, com quem cheguei a almoçar diariamente durante uns bons anos, e a cabeça começa a pensar diferente. Saímos da nossa zona de conforto e aventuramo-nos. Tanto na vida profissional como na vida pessoal. No i, aterro num jornal generalista, com malta a pensar economia, cinema, teatro, hotelaria, restauração, sociedade, política e por aí fora. O mundo estica-se, e de que maneira. Ganha-se em tudo, até porque falar de futebol todo o santo dia é uma seca descomunal. Tanto Observador como Sábado é em registo freelance. Ainda que tenha ido umas quantas vezes ao Observador e saído de rastos: aquela redacção é uma equipa de sub-23, cheia de genica, disponível para ir a todas as bolas como se fosse a última. Nos primeiros tempos, ainda ia lá a pensar que trabalhava alguma coisa. Qual quê, durante quatro horas, desgrava só uns cinco minutos de uma entrevista de 80′ entre muitos objectos voadores, como palavras, chapéus, piropos, convites, solicitações, brincadeiras. Com tanta diversificação, o olhar do jogo torna-se diferente. O meu é essencialmente histórico, claro. Ganhei esse tique no Record, altura em que passava horas a ver as colecções desde 1940-e-tal enquanto o meu editor Luís Óscar corrigia as breves, aaaarghhhhh.
PS – Qual foi o primeiro Mundial de que te recordas e aquele que mais te marcou?
RMT – O primeiro Mundial é também aquele que mais me marca, o México-86. Por tudo. Desde os comentários do meu pai como enviado-especial (ainda me parto a rir com uma carta dele enviada desde a Cidade do México) até aos Maradonas, Ceulemans, Platinis, Linekers, Belanovs e Zakis desta vida. E é a primeira vez que olho de lado para a colecção de cromos quando sei do golo do Papin ao Canadá. Papin, quem é este gajo, pá? Convém lembrar que não havia internet (e os anuários do meu pai estavam trancados, a salvo das mãozinhas curiosas do filho). Mal sabia eu que ele tinha marcado quatro golos ao Alfredo (Boavista) pelo FC Brugge, nessa época 1985-86.
PS – Portugal conquistou o Euro em 2016 com uma geração extraordinária. Para ti qual foi a melhor geração que Portugal já viu?
RMT – A melhor geração é a de 1966 por uma série de razões: pela qualificação inédita (e obtida a uma jornada do fim, um luxo até para os dias que correm em que passam dois de cada vez num grupo isento de obstáculos), pela sintonia entre jogadores campeões europeus (os do Benfica bicampeões europeus, os do Sporting vencedores da Taça das Taças), pela campanha fantástica para um estreante (cinco vitórias em seis jogos), pela espectacularidade dessas vitórias (Brasil arrumado na fase de grupos pela primeira e única vez + aquele inesquecível 5-3 à Coreia) e, sobretudo, pelo ambiente em Portugal. Quer dizer, Portugal era um país fechadíssimo e Lisboa era uma capital no fundo das trevas. Quem lê sobre os anos 50, 60 e 70, sabe que éramos um país triste, vazio de conteúdo. Estávamos fechados ao mundo e até a nós mesmos: ninguém se podia exprimir, ninguém podia ter uma opinião contrária, ninguém se podia aventurar, ninguém podia sonhar. Eram tempos tenebrosos, de incalculável dor para quem se sentisse ávido de conhecimento. A ideia de conhecimento (e divertimento) passava por rezar e ouvir o terço. Com tantas barreiras, chegar a Inglaterra e acabar em terceiro lugar é obra (com golos em todos os jogos, algo nunca mais repetido nos seis Mundiais seguintes). Agora, o que Fernando Santos fez no Euro-2016 é obra. O homem é mesmo engenheiro, só pode. Substitui Paulo Bento e, 21 meses depois, tchan tchan tchan tchaaaaaaaaaan: mais de metade do onze da final é seu (Cédric, Fonte, Raphaël, Adrien, João Mário e Renato). Os outros cinco pertencem a Scolari (Pepe, Moutinho, Ronaldo) mais Bento (Patrício, William).
PS – Quais são as curiosidades que nos podes contar sobre este Mundial?
RMT – Curiosidades, curiosidades? Assim à partida, só ainda não sei quantos bifes tártaros serei capaz de devorar. Futebolisticamente falando, curioso para ver uma selecção africana a dar um ar de sua graça, curioso para ver se a Alemanha imita Brasil 1958-1962 e Itália 1934-1938 como bicampeã na verdadeira acepção da palavra, curioso para ver se o Brasil reage ao 7-1, curioso para ver como Portugal desempata o 3-3 entre ser eliminado na fase de grupos ou avançar para o mata-mata, curioso para ver a Espanha com mão de Hierro, curioso por um Papin desta vida.
PS – Em termos históricos o que representa um Mundial realizado na Rússia?
RMT – So far, so good: estou aqui há 12 horas e sinto-me bem, bastante bem. Vou fazer um ponto prévio, vale? Os Mundiais deviam ser sempre no México. Em 1970, foi o Brasil de Pelé. Em 1986, o Maradona da Argentina. Mas não, a FIFA tem de ser global. Se partirmos desse pressuposto, tenho de fazer um (outro) ponto prévio: sou contra a atribuição dos Mundiais a anos-luz do dito cujo: para mim, realizava-se toda a qualificação e, só depois, a FIFA decidia entre os países apurados que se manifestassem interessados em receber a prova. Mas tudo bem, tuuuuuuuuudo bem: se querem assim, é insistir. Será que a França se apurava para o Mundial-1998 do seu contentamente, depois de falhar os Mundiais 1990 e 1994? é só curiosidade, nada mais (e nada contra, nada mesmo, com o título inédito; até para dar uma valente chapada nas convicções inqualificáveis do monsieur Le Pen). Dois pontos prévios depois, eis-me na mesma. Rússia, perguntas tu. É mais um golpe da FIFA, useira e vezeira nesta irritante mania de encher os bolsos em países cheios de contrastes. Veja-se Argentina em plena ditadura militar em 1978. Ou os mais recentes casos de África do Sul em 2010 e Brasil em 2014. E, já agora, os futuros Qatar 2002 e EUA-México-Canadá 2026. Não há bilhetes para a FIFA. As Pussy Riot é a que sabem toda.
PS – Quais são os teus palpites das selecções que vão passar de cada Grupo? Até onde pode chegar Portugal?
RMT – Sou péssimo nisso. Só para teres noção, em 2010, o jornal i organizou apostas. Eu fiz a minha, toda metódica, e fiz outra para uma revisora em que me aventurei. Na minha, a final devia ser Argentina-Alemanha ou qualquer coisa assim. Na outra, a final foi Espanha-Holanda. Portanto, palpites é comigo mesmo: Egipto e Uruguai, Portugal e Espanha, França e Peru, Argentina e Croácia, Brasil e Sérvia, Alemanha e Suécia, Bélgica e Inglaterra + Polóna e Colômbia. Seremos eliminados nos ¼ pela Croácia.
PS – A liga portuguesa tem vindo a perder as suas referências a nível de jogadores e treinadores. O que podemos fazer para contrariar esta tendência?
RMT – Somos aventureiros por natureza. Aventuramo-nos a descobrir talentos e aventuramo-nos à procura do sucesso. As referências ainda andam cá, só que menos tempo, muito menos. Jackson, por exemplo, é daqui (sort of speak). Como Falcao, James (tens razão, vou sair da Colômbia), Ederson, Oblak, Slimani, Madjer, David Luiz. O mesmo para os portugueses: Ronaldo, Bernardo, João Mário e por aí fora. É tudo nosso, como se tivéssemos voltado ao tempo dos Descobrimentos. O problema é a lei Bosman, a globalização e a força financeira dos outros campeonatos. Este hat-trick impede-nos de contrariar a tendência e também nos impede de apreciar anos a fio os Mladenovs, Radis, Balakovs, Iordanovs, Kostadinovs (tens razão, vou sair da Bulgária), Brancos, Silas, Ricardos e Mozeres (tens razão, vou sair do Brasil) e Ivkovics desta vida. Com os treinadores, é a mesma coisa. Quem quer ficar em Portugal quando há todo um mundo mais desafiante por desbravar? Somos aventureiros por natureza. Só nos resta sair para continuar a ganhar.
PS – Qual é a tua opinião sobre o actual estado do futebol português?
RMT – Errrrrr, má? Ya, é má mesmo. Queiramos ou não, o futebol português é bipolar desde 2002 e só há dois campeões há 16 anos seguidos, é um-dó-li-tá entre Benfica e Porto. Isso é uma treta. Valha-nos a Taça, com sete campeões nos últimos oito anos (só repete a dose o Benfica). Mas a maior, grande, enorme desilusão é a ausência de um Domingo Desportivo. Já não há um programa em que se fale de desporto, com futebol nacional, futebol internacional e modalidades. O básico simplesmente desapareceu. Deixou-se de dar voz a quem de direito: os jogadores falam pouco, os treinadores levam-se muito a sério e os dirigentes têm até mais tempo de antena que o Marcelo. Como se isso fosse pouco, as receitas televisivas não são divididas irmamente e a comunicação social vai a todas, sem critério. Pergunta: os jogadores querem mesmo falar? (pela minha experiência, eles fogem dos jornalistas como o diabo da cruz e têm medo das perguntas de sempre sobre quem é o favorito, de que lado está a pressão etc e tal). Pergunta, outra: os clubes abaixo dos grandes querem mesmo que as receitas televisivas passem a ser divididas irmamente? (não haverá aí um jogo político carregado de interesses em que um clube de classe média-alta mande às malvas o dinheiro em troca de uns favores mais urgentes, como jogadores emprestados, hum?) O mais fascinante de tudo é que isto é assim há décadas e décadas e continuamos a deixar uma marca fantástica lá fora. Até o Braga já tem uma final europeia, isso é simplesmente formidável. E, carago, somos campeões europeus. Há coisas tortas que se endireitam de vez em quando.
PS – Acreditas que os comentadores e jornalistas têm um papel fundamental na pacificação do futebol português? Como é que podemos inverter esta situação e colocar todos os intervenientes a falarem do jogo jogado?
RMT – Sempre que se fala disso, lembro-me da Princesa Diana. Calminha gegé, já explico: a morte dela suscita um ódio visceral contra os paparazzi. No mês seguinte, a BBC faz um inquérito aos ingleses e 86% (oitenta-e-seis por cento) lêem as revistas das cusquices. À pergunta inevitável do porquê, a resposta evitável: ‘para ver o interior da casa dos famosos’. Somos curiosos. Por natureza. E não há nenhum mal nisso. Também somos exagerados e o mal é esse (em parte). Porque o exagero expõe o pior de nós. Dos 86% ingleses a favor das revistas cor-de-rosa, talvez 85.8 seja contra os paparazzi: e agora? Se os comentadores têm um papel fundamental na pacificação do futebol português? Não, claro que não. A maioria não esclarece, só insinua. A maioria não analisa, só protesta. A maioria não ouve os outros nem os respeita, só se quer ouvir a si mesmo (isto é válido para o futebol e também para a política). Ora, se não querem ouvir disparates, não ouçam nem vejam e muito menos comentem no dia seguinte em conversa no fumódromo. Sem audiências, não há quem resista. Para o bem e (neste caso) para o mal.
PS – Escreveste vários livros ao longo dos anos. Como surgiram estes projectos? Para quando um próximo livro?
RMT – O primeiro projecto de todos nasceu em Milão, quando fui ver o Milan perder dois jogos em casa: um com o Inter (golo de Vieri com o joelho, ele há cada um), outro com o Roda (sim, o inenarrável Roda JC Kerkrade), ambos 1-0. Estava ali a dar um passeio perto do Duomo e vi o anuário do Milan. Comprei-o. E li-o no metro, depois no avião. Aquilo tinha tudo: pouca parra, muita. E que tal fazer isso em Portugal? Falei com um amigo (João Mendonça), fomos seis meses de férias para Itacaré, na Bahia, e fundámos a editora Almanaxi com o intuito de fazer o almanaque do Benfica, a propósito do centenário, depois o da selecção, a bater com o Euro-2004, e finalmente o do Sporting, também a propósito do centenário. Ainda havia Porto no horizonte, só que a porta estava fechada. Adiante, a aventura correu bem, desde o mergulhar nos arquivos do DN até à publicação dos calhamaços. Já sem Almanaxi, os convites de outras editores apareceram e aproveitei-os ao sabor do vento. O próximo está marcado para o Natal. Se sobreviver aos bifes tártaros na Rússia.
PS – Existe algum documentário ou livro que te marcaram e que queiras sugerir?
RMT – Documentário é o do Ibra, chi-ça. Becoming Zlatan, de 1999. Genial: o Ibra e, sobretudo, o autor do doc. Quem é que se lembra de seguir um jogador desconhecido do Malmö desde os 18 anos até à transferência para a Juventus? É imperdível, o filme. E sublime, a viagem. Em matéria de livros, voto a autobiografia do Carlos Gomes, o tal guarda-redes que jogava de preto em protesto com os doutores do futebol. Também há o “Garrincha, Estrela Solitária” do Ruy de Castro, óbvio.
PS – Quais são os teus planos de futuro no futebol e nos comentários desportivos?
RMT – Plano de futuro? Um bife tártaro daqui a uns minutos. Planos de futuro no futebol? Ver cinco dos últimos oito jogos do Mundial-2018, entre dois quartos-de-final, duas meias-finais e a final. Planos de futebol nos comentários desportivos? Que o GEL (Grandiosa Enciclopédia do Ludopédio) chegue aos mil programas (‘tá quase, já vamos em 129)[:]
Para todos os clubes, treinadores, jogadores, olheiros, agentes, empresas e media que queiram saber mais sobre os nossos serviços de scouting, não hesitem em contactar-nos através de mensagem privada ou do nosso email geral@proscout.pt.
